EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

raízes...

Continuei ali, parada, entorpecida. Senti que o céu havia ficado cinza e que a chuva se anunciava. Vi os carros passando numa velocidade irreal, o mundo parecia andar mais devagar.

As primeiras gotas de chuva começaram a cair, e tinham um peso absurdo. Cada gota, um golpe. As pálpebras fechavam-se a cada impacto, mas não conseguia me mover. A velha árvore que me servia de abrigo nos dias de sol secara: o outono levou embora suas folhas. Tentei buscar algum pensamento que justificasse aquele torpor ou que me fizesse mover, mas até os pensamentos fugiam de mim... Foi a primeira vez que consegui pensar em nada. O nada era um lugar interessante, um pouco intrigante, cercado de mistérios, mas tinha um "quê" de acolhedor. Era algo parecido com aquelas salas à meia luz dos filmes "noir", onde apenas o que se vê é a névoa dos cigarros em tons de cinza. O que havia lá? Não sei. Aquela imagem não mudou: não havia personagens interagindo, objetos, sons. Era apenas... nada, lugar algum, espaço vazio, silêncio absoluto. Senti medo de ficar presa dentro daquele pensamento, mas, por outro lado, aquele era o lugar ideal para me esconder. Ali ninguém me acharia.

De repente surge a voz de Etta James cantando Stormy Weather... perfeito... por que não posso ficar 5 minutos com o meu pensamento vazio? Ok. É perdoável, afinal de contas, era Etta James... Mas o "soundtrack" me fez voltar à realidade da pesada chuva e do corpo ensopado e dolorido. A velha árvora estava ali, tão imóvel quanto eu, talvez pensando nos dias de sol... talvez ela também tenha sido despertada de seu pensamento pela voz de Etta... E nós duas - eu e a árvore - continuamos olhando para o outro lado, para as enormes poças que formavam-se junto ao meio-fio. Resolvi, então, atravessar a rua. Logo no primeiro passo, pude ouvir o pensamento pesaroso de minha velha e desfolhada amiga: "Feliz é você que não tem raízes."

Ah, se ela soubesse...


3 comentários:

Ricardo Augusto disse...

"Tentei buscar algum pensamento que justificasse aquele torpor ou que me fizesse mover, mas até os pensamentos fugiam de mim... Foi a primeira vez que consegui pensar em nada. O nada era um lugar interessante, um pouco intrigante, cercado de mistérios, mas tinha um "quê" de acolhedor."

Perfeito! Já disse que vc é uma das minhas escritoras preferidas? :)

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Ah, é?
Não, não disse ainda...
Well... pode repetir?
:p

Andréa Ferraz disse...

Como já deu para perceber, não escrevo nada mas leio tudo...rsrs...mto bom tudo isso aqui!!