EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

nem todos os finais são felizes...

Ele olhava triste as fotos do passado. As imagens amareladas de sua infância faziam inundar os olhos de saudosismo salgado.
As paredes ao seu redor já não eram mais tão brancas: estavam tão encardidas quanto as velhas fotografias.
Pelo chão, caixas com os restos das refeições encomendadas dos dias anteriores. Na mesa, caixas com recordações do passado. Lia as velhas cartas e sentia o peito transbordar, a garganta queimar, os olhos arderem. Viu as fotos de sua companheira de anos. Sorriu. Tinha sido uma companheira fiel, dedicada, amorosa, mas as diferenças pesaram mais que o amor e então ela o deixou. A separação não foi tão dolorosa. De certa forma, ele esperava o dia em que a companheira não suportasse mais a sua gravidade, o seu desejo de liberdade. Depois de tantos anos, viu-se sozinho novamente. Talvez tivesse falhado em dar o amor que ela necessitava, talvez a amasse de uma forma diferente do que ela desejava. Talvez não fosse nada disso. Talvez ela tivesse cansado de se doar tanto a ele.
Aquele era um momento de reflexão, de análise. Tentava buscar respostas para as perguntas que fazia a si mesmo, no meio da sala vazia. O silêncio era ensurdecedor.
Em cima do sofá, uma outra caixa. Pequena, preta, coberta pelo pó dos anos. Sentou-se e a pôs no colo. Passou a mão pela tampa, removendo a poeira pesada que havia se instalado ali. Sentiu o pulso acelerar quando lembrou do conteúdo. Observou por alguns instantes a pequena caixa e apertou os olhos, contendo o choro. Precisava olhar o que havia ali, mas tinha medo de ser tomado de assalto por velhos sentimentos.
De olhos ainda fechados, abriu lentamente a caixa. E lá estava tudo o que lhe fizera feliz muitos anos antes: outras fotos, outras cartas, pequenas agendas feitas de diário, outro rosto. Não conseguia mais conter as lágrimas, e elas corriam desatinadas pelo rosto, molhando os papéis comidos pelas traças, manchando algumas letras escritas a nanquim e bico de pena. Aquele amor o havia consumido, havia tirado seu sono tantas e tantas vezes, o havia feito chorar. Aquela caixa era o seu segredo, seu romance proibido e infiel, uma vida paralela dentro de sua própria vida. Era o jardim de rosas brancas prometidas entre os lençóis sujos de gozo, a felicidade desmedida e louca da juventude, a felicidade que apavora os mortais. As convenções separaram o que os deuses temiam tocar. Ainda podia lembrar da tarde chuvosa em que disseram adeus. Aquela ferida nunca havia cicatrizado, o coração havia ficado menor, com uma porção inoperante. Optou pela segurança, pelo tempo, pelo certo. E deixou para trás os gemidos insanos e as noites de lua cheia. Deixou para trás a alegria sem cercas. E o verdadeiro amor.
Céus, há quanto tempo não via aquele rosto? Levantou-se e vasculhou todas as outras caixas, agendas antigas, cadernos de anotações. Não adiantava. Não estava mais lá.
Buscou o nome completo e procurou na lista telefônica. Não havia registro. Talvez ela tivesse casado, mudado de nome, mudado de país. Aquele pensamento atravessou o peito feito uma adaga. Lembrou de uns dois nomes de amigos em comum daquela época. Conseguiu localizar um deles na lista. E ligou.
O outro demorou a reconhecê-lo, mas pôde ajudá-lo a encontrar a informação que precisava. Tinha um número de telefone, mas disse que havia dois anos que não se falavam. Não sabia dela naquele instante.
A conversa foi rasa e rápida. Agradeceu e desligou. Olhou o papel com o telefone por minutos intermináveis, sem saber o que diria, o que perguntaria. Muito tempo havia passado. Sentiu medo.
Abriu uma garrafa de conhaque e sentou no chão, ao lado do telefone, com fotos dela na mão. Precisava se acalmar, controlar o tom de voz. Pegou o fone várias vezes e voltou a colocá-lo no gancho, ensaiando o que diria. Estava ansioso, excitado, nervoso.
Enfim, a coragem. Discou o número e uma voz feminina e jovial respondeu do outro lado da linha. Perguntou por ela e a moça disse que ela não morava mais lá. Fez-se silêncio.
- Onde posso encontrá-la?
- Quem está falando?
Novamente o silêncio.
- Um amigo. Um antigo amigo.
- Há quanto tempo vocês não se falam? perguntou a moça.
- Há muito tempo. A vida inteira.
- Desculpe, acho que não posso ajudá-lo.
- Por quê?
E foi então que a voz da moça ficou embargada, quase rompendo em pranto.
- Ela foi embora.
- Pra onde?
- Posso dar o endereço, mas você não conseguirá falar com ela.
- Por favor, preciso entrar em contato com ela. É urgente e eu...
Antes que ele terminasse a frase, a moça completou:
- Leve rosas. Mamãe gostava muito de rosas brancas. No epitáfio, ela pediu aplausos e rosas brancas de um tal jardim secreto. Só ela sabia o que isso significava.


14 comentários:

Anonymous disse...

pq alguns sao nostalgicos?

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Não sei.
Você é?

Priscila disse...

Ai que tristeeee
*olhos piscando pra afastar as lágrimas*
Tá, passou. Nem todos os finais são felizes, mas alguns, quem sabe.
Sempre há a esperança de estarmos entre os "alguns" felizes.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Você, como minha irmã (com laços bem maiores que os de sangue) sabe o que dizem a respeito de bruxas, não é?
Bruxas sempre acabam sozinhas. Morrem sozinhas. Mesmo tendo um grande amor na vida.
E pode chorar. Eu mesma chorei de soluçar enquanto escrevia...

Anonymous disse...

Não gosto também de Bruxas, elas são alguma coisa como uma mistura de feio com o não agradável, nem tudo que é feio é desagradável e nem tudo que é agradável é bonito. Em lugares desagradáveis coisas feias acontecem... mas depende de quem vê...

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Conhecendo você como conheço, não podia esperar outro comentário...
Pode postar com o seu nome. Ninguém se incomodará.

Priscila disse...

Meu caro anônimo.
Não agradável é declarar uma bobagem dessa e nem ter peito de colocar nome.
Faça uma pesquisa histórica e teológica, pelo menos, antes de falar.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

\o/

E agora José? disse...

Eu quero um final feliz.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Eu também... É o que mais quero...

Anonymous disse...

Desculpe ser metediço.
Felicidades e bonita foto.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Neste caso, entre "sujo", "mudo" e "sócio", o "mudo" deve prevalecer. Os outros dois perderam as oportunidades quando calaram-se também.

karina disse...

nossa,estou em lagrimas,isso me fez lembrar quantas vezes me pediram amor e eu simplismente virei as costas por medo de sofrer,quando dei uma chance ao amor sofri,pois não basta amar,deve-se amar e ser amada,e ainda sofrerei muito por amores que tive,não tive e terei,este inferno de amar...

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Sim, este inferno de amar...
Mas... medo de quê? Medo pra quê? Amar é um risco. Mesmo quando sofremos, ainda resta o gosto doce das coisas boas que tivemos. Melhor sofrer por amor do que ser triste por nunca ter conseguido dar uma chance a ele.
Como disse Vinicius:
"Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer..."

Eu quero morrer de tanto amar... mesmo que eventualmente precise lamber as feridas.