EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Ninon...

A noite caiu e trouxe consigo o silêncio dos campos, o barulho do mato. Podia-se ouvir o riacho correndo nos fundos e o sibilar de animais noturnos. O assobio da chaleira irrompeu o silêncio da velha cabana. O chá estava pronto.
Imerso em pensamentos estranhos sobre a humanidade, imaginou que aquele seria o lugar mais adequado para se viver, exatamente por ser longe do que chamavam civilização.
Ouviu-se um barulho à porta, algo semelhante a arranhões. Apreensivo, caminhou lentamente pela sala à meia-luz, buscando com os olhos algo com que pudesse se defender. Mas o barulho havia cessado.
O silêncio foi novamente instaurado, cortado apenas pelo som da água que corria. Encostou o ouvido na madeira velha, tentando identificar algum som vindo de fora. Nada.
Abriu a porta lentamente, e, em meio ao escuro da noite, lá estava ela, agachada junto à escada, acuada feito um animal perdido, suja e descabelada como uma selvagem.
Surpreso e assustado, perguntou-lhe o que fazia ali. Em resposta, apenas um aceno negativo com a cabeça, como se não pudesse falar. Estendeu-lhe a mão e a convidou para dentro da casa, mas ela recuou. Sentou-se então no chão, esperando que ela se sentisse mais confiante e deixasse que se aproximasse mais. Passaram horas assim, em silêncio, olhando o outro, analisando. Ela levantou-se e passou por ele tão rápido que seus olhos mal puderam acreditar. Quando olhou para dentro, lá estava ela, quieta, analítica, junto à lareira. Entrou e fechou a porta, podendo enxergar melhor aquele animal no corpo de mulher. Tinha olhos brilhantes e grandes, rasgados, num castanho quase transparente, semelhantes aos olhos de um felino. A boca era pequena, saltada, carnuda, bonita. As unhas, longas e negras. Estava quase nua, envolta em trapos, suja de sangue, como se tivesse atacado ou sido atacada. Não duvidava que aquela criatura tivesse destroçado alguém ou alguma coisa com os próprios dentes. Seguiu em direção ao banheiro e buscou uma toalha limpa. Ela o seguia, mantendo uma certa distância, observando cada gesto, cada passo. Ficou quieta no canto do banheiro enquanto ele enchia a banheira de água morna para que ela se lavasse. Antes que ele pudesse sair do banheiro, ela despiu-se e entrou na água, soltando pequenos gemidos, quase miados. Ele tentou não olhar, mas não pôde evitar. Era a visão do paraíso - ou talvez do inferno - aquela criatura, a mistura de mulher e bicho, um felino talvez, banhando-se daquele modo: ela lambia as mãos molhadas, como se estivesse lavando seus machucados, exatamente como os animais fazem. Seria hipócrita se negasse que aquilo o excitava. Era estranho, diferente, e mesmo assim, sensual demais.
Dirigiu-se de volta à penumbra da sala e tentou desviar os pensamentos. Indagou, então, de onde teria surgido aquela mulher, o que teria acontecido com ela. Antes mesmo que ele concluísse alguma coisa, ela surgiu, nua, ainda molhada, e deitou-se no tapete, ao pé do sofá. Logo adormeceu, ronronando feito gato que está sendo acariciado.
Ficou pasmo, sentiu pena, não sabia se a deixava ali ou devia colocá-la na cama. Sentiu medo que ela o atacasse ou se apavorasse. Achou melhor deixá-la ali. Buscou uma colcha e a cobriu.
Só então foi para a cama.
Deixou um lampião aceso na cabeceira. Custou a dormir. O sono era leve como as sestas das tardes, e os sonhos não passavam de pensamentos embaralhados dos que ainda não caíram nas graças de Morfeu. Virou para o lado e assustou-se ao ver que ela estava ali, em sua cama, sentada e olhando enquanto ele se revirava entre as cobertas. Pulou, sobressaltado. Mas ela sorriu. E começou novamente a lamber os pulsos e as costas das mãos, num verdadeiro banho de gato, enroscando-se entre as cobertas e esfregando-se em suas pernas. Ele, perplexo, não conseguia se mover. Achou que estivesse sonhando, a excitação e o medo tomaram seu corpo num assalto à sanidade.
Mas foi quando ela sentou em sua coxa, esfregando o sexo nele, que deixou o medo de lado e rendeu-se ao animal no cio. A mulher parecia um gato, mas era mulher, mais mulher do que jamais houve igual.
Ela levantou-se e sentou novamente no colo dele, dessa vez encaixada em seu sexo, gritando, gemendo... Ele, instintivamente mordeu-lhe a nuca, fazendo com que ficasse presa por ali também. Eram então, dois animais.
As unhas foram cravadas nas coxas e deixaram marcas de arranhões profundos por onde passaram. De quatro na cama e com o quadril empinado, ela estava totalmente entregue, e o macho, engatado nela e com caninos à mostra, também a arranhava e mordia e marcava e lambia. Eram dois iguais e desejavam ser um só: um corpo, um gozo único, simultâneo.
E gozaram. Os corpos abandoram-se e repousaram nos lençóis molhados.
- Ninon. Pode me chamar de Ninon.

Ele não quis entender nem perguntar de onde vinha ou o que tinha acontecido.

Sabe-se que depois daquela noite, a mulher com olhos de gato usou uma gargantilha com o nome Ninon gravado nela, qual coleira.

Ninon, a onça, havia sido domesticada.


2 comentários:

E agora José? disse...

E ele? Deixara de ser homem para se tornar selvagem?

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Ele tornava-se selvagem na cama...
Na verdade, ele libertava a besta quando estava com ela...
Quem não sonha com isso?