EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

o cavaleiro e o vento...

Ainda perdido pelo mundo, o cavaleiro continuava a busca por sua alma. Precisava encontrá-la para ter de volta o coração.
Lembrou de Helena. Sentia, de alguma forma, que ela havia pulado e fugido do claustro da torre fria. Esperava que ela não tivesse atravessado a linha que separava o paraíso do inferno, que ela estivesse na segurança da floresta verde. Um frio percorreu a espinha quando imaginou que a serpente que ela carregava na alma tivesse sido revelada. Tal pensamento inundou de horror o peito vazio do cavaleiro, que, num ímpeto, resolveu voltar.
"Helena precisa de mim", pensou.
Irrompeu florestas e aldeias que já havia cruzado num galope tão veloz quanto seus pensamentos, temendo que o pior tivesse acontecido. Precisava ajudar Helena.
Dias e noites passaram até que pudesse estar de volta à pequena aldeia aos arredores do castelo. Só havia uma pessoa que podia ajudá-lo a entrar no paraíso. Essa pessoa era Virgo, o fiel e corajoso rapazote que havia cuidado de seu cavalo meses antes, a quem dera sua armadura.
Ao chegar, notou que parte da aldeia havia sido destruída. Deixou o cavalo e saiu à procura do rapaz, temendo não encontrá-lo.
Os aldeões não tinham mais a mesma vivacidade no olhar. Andou entre eles e pôde avistar Virgo sentado sob uma imensa árvore.
Aproximou-se e percebeu que o rapaz tinha os olhos vidrados em algum ponto distante dali. Sentou-se ao lado do rapaz, em silêncio. Sem desviar os olhos do horizonte, Virgo disse:
- Sabia que voltaria.
- O que houve?
- Isabeau. A maldita veio do inferno procurar por você. Quis que dissesse seu paradeiro, mas mesmo que soubesse, não teria dito a ela. Furiosa, queimou parte da aldeia.
- Maldita...
- Salvei os pequenos que ficaram presos dentro da casa de Mitgaard. O velho morreu. As chamas queimaram meus olhos, caro amigo. Nunca mais verei o sol...
- Sua coragem fez de você um homem. Já não é mais um rapaz.
Ficaram em silêncio por alguns instantes.
- Voltei porque preciso de sua ajuda. Agora mais do que nunca, preciso encontrar Helena.
- Eu fiz o que pediu. Mandei um corvo à janela de Helena entregar o bilhete que confiou a mim. Helena pulou.
- Obrigado. Sabia que não falharia. Mas agora preciso ir ao encontro dela.
A última frase fez Virgo desviar os olhos do horizonte e virar o rosto na direção do cavaleiro, mesmo não podendo vê-lo.
Levantaram-se e caminharam juntos em direção à floresta secreta, o lugar onde só os mortos podiam entrar.
O cavaleiro desembainhou novamente a espada e entregou ao rapaz.
- Não hesite.
Disse isso encostando a espada no peito, enquanto Virgo a empunhava.
- Não posso...
- Não posso fazer isso sozinho. Se o fizer, irei direto ao inferno, mas tenho esperanças de que Helena ainda esteja no paraíso. Faça isso por todos nós. Por você, por mim, por Helena, por Mitgaard e por todos os que morreram pelas mãos da maldita bruxa.
E com um grito gutural, Virgo fez a lâmina atravessar o peito do amigo, fazendo o corpo tombar bem a sua frente.
Com lágrimas nos olhos e soluços que não podia conter, o rapaz deixou-se cair ao lado do corpo sem vida do cavaleiro, pedindo aos deuses que o perdoassem pelo que acabara de fazer.

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Abriu os olhos e sentiu a relva fria com as mãos. O lugar era diferente. Virgo não estava mais lá. Eram outras árvores ao seu redor e o vento soprava com uma força que não conhecia, sussurando palavras que não conseguia entender.
Olhou o peito e não havia cicatriz alguma ali. O corpo doía e a cabeça pesava. Não conseguia ficar de pé.
Mas o sibilar do vento morno contava-lhe histórias, falava sobre Nina e sua passagem por lá. Achou que estivesse louco, que houvesse perdido totalmente o juízo. Procurava Helena, e não Nina. E o vento contou-lhe que Helena havia morrido na queda, e que no paraíso, passara a chamar-se Nina. E que havia cruzado os limites do inferno.
Chorou. Pela primeira vez sentiu lágrimas queimarem seu rosto. Havia perdido Helena.
- Aqui no paraíso Nina é minha amante, disse o vento. Mas não posso resgatá-la do inferno. Ela foi por vontade própria, movida pela curiosidade das novas descobertas, movida pela serpente que já crescia dentro dela.
O cavaleiro enfureceu-se e amaldiçoou o dia que partiu da aldeia. As lágrimas corriam tão abundantemente por sua face, que mal podia enxergar o que estava ao seu redor.
- Só há uma forma de salvá-la. Deixe minha alma tomar teu corpo, e seremos um só. Vá ao inferno e resgate Nina. Provavelmente encontrará também tua alma por lá.
Baixou a cabeça e lembrou do pacto que havia feito com Isabeau anos antes. No leito de morte de seu pai, a maldita bruxa surgiu e fez uma proposta: pouparia a vida de seu pai se entregasse a ela sua alma. Ele aceitou. Não sabia que Isabeau, a colecionadora de almas, não cumpriria sua parte no acordo...
Seus pensamentos foram interrompidos novamente pelo sussurro do vento:
- Aqui teu nome é Lothar.
E assim o cavaleiro, então Lothar, abriu os braços e deixou a alma do vento tomar seu corpo, na comunhão que traria de volta Helena, que resgataria de vez sua alma...

5 comentários:

E agora José? disse...

Sensacional. Melhor, impossível. Isabeau, a colecionadora de almas, adorei isso. E avante Lothar, será que Nina vai te querer de volta?

I'm Nina, Marie, etc... disse...

A maior pergunta: será que o vento deixará Nina partir com Lothar depois que ele recuperar sua alma?
Tá vendo? Você me dá idéias. Isso vai acabar deixando de ser um conto para virar um romance...

E agora José? disse...

Isso é muito maior do que podemos imaginar. É fantástico, sensual, inocente, profano, misterioso, épico, mitológico, lírico... É Nina.

Ricardo Augusto disse...

Uia! O.o

Às vezes Clarice...
Às vezes Nelson...
Às vezes Tolkien...

Há mais facetas em Nina do que caberia em Isabeau ou Helena ;)

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Os nomes são o máximo... Eu gosto mesmo é dos nomes...
:p