EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

dois...

E ele era assim: único e indivisível. Estava inteiro o tempo todo, mesmo quando músicas em momentos inusitados traziam água aos olhos. Também sentia: sabia sentir como poucos. Havia descoberto um gosto diferente nas coisas, havia corrido os riscos e provado as tais nuvens.
Tornou-se gigante: lambia o céu e afastava com a língua as meninas brancas que insistiam em cobrir o sol. Conseguia, com um simples estender de braços, arranjar as estrelas de modo que a constelação certa ficasse na direção de sua janela, para que pudesse dormir olhando os pontos brilhantes formadores de desenhos que embalavam o sono dos amantes. Aproximava-se da lua, aquela indecente moça cíclica, e sorria para ela, em retribuição, durante seu quarto crescente. Gostava de valsar em meio a pessoas estranhas, em ocasiões estranhas, ocasiões em que apenas ele (e ela) sabiam decifrar os sinais dos corpos, o movimento dos olhos.
E os olhos... ah, os olhos! Aquele par brilhante e verde que confidenciava-lhe segredos em silêncio, cerrava-se entre cílios que se curvavam em direção ao céu. Os mesmos olhos não carregavam arrependimentos ou mágoas ou fardos que o fizessem pesar, que o tornassem grave. E isso, particularmente, o tornava especial.
E ela, tão múltipla e fragmentada, viu-se inteira, de repente. Não porque o considerasse sua metade, mas um convite à dança. Um inteiro interessante, único, musical, indecente, escandaloso, tão escandaloso quanto as partículas dela que novamente se atraíam e moldavam.
De braços abertos, entregou-se - integralmente - àquela música que somente tocava quando os olhos de argila perdiam-se no verde dos outros olhos; quando os pensamentos cruzavam o céu e a carregavam de encontro a ele, tal Psiquê carregada por Zéfiro até a morada de Eros...
Eram, enfim, dois.

(Postei esse texto no blog do José no final de semana antes da internação. Só agora percebi que não o tinha postado aqui. Gosto muito desse. Então, aqui está.)
Postado por Nina


2 comentários:

E agora José? disse...

Você ensinou Dança à Música. A bailarina que me faz sonhar. O vento que dá sentido ao canto dos pássaros e cigarras, valsando com as folhas pelo ar. Se eu sou lobo, você minha querida, é a minha lua. Não há nada que o lobo ame mais do que uivar para a sua amada cíclica, bobo de paixão e amor. Enfim, um lobo bobo irremediavelmente perdido de amor por você.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Sim, a lua cíclica... esta sou eu... não sabendo como estarei amanhã, mas completamente feliz por estar assim hoje... exatamente como Clarice...

Cíclica e perdida de amor... pelo o que está longe nesse momento... pela distância que não mais me incomoda...