EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

sobre a carne...

Eu sou um perfil. Uma pintura. Uma louca entorpecida pelo ópio do teu corpo.
Eu sou uma música: uma valsa, talvez. Sou a nota grave de uma sinfonia esquecida.
Sou a palavra materializada em tua boca, o pecado marcado em tua carne.
Sou o sexo pulsante e faminto. Sou o gozo. Sou a boca que te mastiga e engole.
Sou o mármore do teu corpo, tua lápide, tua última morada.
Sou a morte, a tua "pequena morte".
Morra em mim, enigmático gigante!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

diário de salomé: o estrangeiro...

Odalisque by Jules Joseph Lefebvre


Nas noites em que o bordel transbordava de lascívia por todos os cantos, era tomada por uma brandura inexplicável. De modo extraordinário, a movimentação das outras prostitutas fazia com que esquecesse minha própria posição de meretriz. Sentia-me uma outra pessoa, uma observadora distante, um espectador diante do grande palco. Então sentia-me mais limpa, menos ordinária. Não negarei que sentia um certo prazer naquela vida: foi aquele mundo que me acolheu ainda menina. Não conhecia outro além daquele e da minha infância maculada pela sujeira de meu pai.

Nesses dias de intenso movimento, arrumava-me de modo calmo e minucioso, pois havia de esperar os clientes mais importantes. Dificilmente havia alguém diferente dos clientes habituais - os mais abastados eram meus (e não eu deles, como poderia qualquer um imaginar). O coronel comparecia pontualmente e sempre trazendo mimos nada sutis. Havia anos que se servia de meus préstimos, mas a idade o aplacara de modo cruel. Havia também os políticos, os figurões de cidades vizinhas. Os viajantes, esses eu deixava para as outras meninas, já que não poderiam pagar meu preço.

Lembro-me de um estrangeiro, que em suas calças surradas e botas sujas irrompeu o salão, em meio à névoa de fumo e luxúria. Particularmente belo, tinha cabelos longos e olhos de mistério. Dirigiu-se ao bar e perguntou por mim, enrolando a língua para pronunciar meu nome. Os que estavam ao redor dirigiram o olhar em minha direção, dando ao estrangeiro a resposta à sua pergunta. Observou-me por alguns instantes, com um sorriso no canto da boca e tragou o cigarro que tinha entre os dedos. Confesso ter ficado perturbada, e no primeiro instante, o considerei insolente por imaginar que pudesse me possuir. Não me deitava com viajantes, afinal, era a puta sublime, tinha de joelhos diante de mim os homens mais importantes e ricos. Gostava da sensação de poder, gostava de me sentir desejada e endeusada pelos homens, gostava de ver a disputa entre eles para se deitarem comigo. Gostava de ser paga. Se quisessem estar entre meus lençóis, deveriam pagar. O que me fazia tão cara era justamente o rosto ainda de menina, a candura dos traços, aliados ao olhar felino de mulher, ao jeito de animal, ao ar de mistério. Era uma deusa na alcova.

O estrangeiro dirigiu-se a mim e ergueu a mão. Entreguei-lhe a minha, e ele então a beijou. Havia nele um quê de mistério, algo irônico. Com um suave balançar de cabeça, fiz um sinal negativo, para que entendesse que não poderia me possuir. E com o mesmo sorriso no canto dos lábios, abriu a bolsa e mostrou-me a maior importância em dinheiro que jamais havia sonhado. Não imaginava que meios o estrangeiro havia utilizado para ter em poder tal soma, e pouco me importava. Era o meu ofício.

Subimos ao aposento de cetim vermelho - meu aposento - e o estrangeiro repousou a bolsa em uma grande poltrona no canto do quarto. Sem dizer uma palavra, despiu-se e, sem dar importância a minha presença, foi banhar-se. Não sabia o que meu cliente desejaria, e senti que talvez tivéssemos algumas dificuldades de comunicação verbal: precisaria lançar mão da linguagem do corpo, da linguagem universal que todos compreendem.

Espiei o estrangeiro imerso em minha banheira, de olhos fechados, como se há muito estivesse esperando por aquele momento. Preparei uma bebida e aproximei-me lentamente da banheira. Seus olhos se abriram e o sorriso despontou novamente em seu rosto: não era um sorriso escancarado: era pequeno, angular, quase secreto. Pegou o copo de minhas mãos, e seus dedos acariciaram levemente os meus. Era diferente. Diferente e perturbador. Voltei para junto da cama, aguardando.

O homem saiu da banheira, enorme, forte, nu, enxugando os cabelos compridos com uma pequena toalha e caminhando ainda molhado em minha direção. Tremi inteira. Ao chegar perto, inclinou-se e beijou minha testa, virando-se em direção à cama. Deitou-se e me fitou por instantes intermináveis. Nada disse. Alisou o lençol de cetim vermelho, convidando-me a juntar a ele. Deitei e me movi para perto, tentando desfazer a timidez que muitas vezes antecede o sexo pago. Mas ele me deteve: não deixou que o tocasse daquele jeito. Virou-se para mim e desamarrou o roupão de seda que eu usava - enquanto ele se banhava, despi-me e vesti o roupão, apenas. Sorriu e passou a mão pelo meu corpo, dos seios ao sexo, e deteve-se. Encarou-me nos olhos e passou a afagar meus cabelos, sem pressa. E, por incrível que possa parecer, adormeceu. Senti-me rechaçada. Homem algum havia conseguido passar alguns momentos ao meu lado sem desejar me tomar para si. Entre pensamentos sobre rejeição e indignação, também adormeci.

No meio da noite, fui despertada por um breve movimento na cama. O estrangeiro me fitava e se tocava lentamente, como que para não me acordar. De certa forma aquilo me excitou. A profissão havia me colocado numa posição em que raramente conseguia extrair algum prazer sexual, mas o estrangeiro provocou-me essa erupção, esse calor, esse desejo de me sentir possuída por ele. O sexo era tão perfeitamente desenhado que fez o meu vibrar. Ele não me deixou tocá-lo. Seu prazer residia em me excitar, em me fazer molhar e desejar ser tomada por ele. O homem mordia o lábio, enquanto sua mão fazia movimentos lentos para cima e para baixo, revelando uma pequena gota de excitação na extremidade de seu sexo. Observei-o por momentos que pareciam não ter fim, e sem me conter, deixei minha mão deslizar para o meio de minhas pernas. Minha carne queimava e contraía ao toque dos dedos. Sem parar de friccionar o pênis, dirigiu-se ao meio de minhas coxas e me contemplou com sua língua quente e faminta. Afastou minha mão para que pudesse abocanhar minha carne lisa e quente. Ele se tocava cada vez mais forte e quase mastigava meu sexo. De repente, parou. Colocou-se de joelhos na cama e me olhou, sério. Segurou-me pelos cabelos e me pôs de quatro à sua frente, rosto colado em seus pêlos, esfregando meu rosto no nervo tenso e excitado. Minha boca o buscou, envolvendo, à princípio, a porção mais protuberante e lisa do falo, enquanto a língua fazia movimentos circulares para extrair mais uma porção líquida de excitação. Logo estava inteiro em mim, tocando minha garganta. Minha pele marmórea se empinava a cada golpe em minha boca. Meu sexo se derretia inteiro, umedecendo a virilha, o início das coxas. Afastou-se e, puxando-me pelos cabelos, fez com que levantasse até sua boca. Era a primeira vez que sentia vontade de beijar alguém que estivesse pagando pelos meus préstimos sexuais. Pude sentir o meu gosto na língua macia e quente. Sentia que ia explodir. Precisava ser dominada por inteiro. Precisava da força dele dentro de mim.
Sem desgrudarmos as bocas, deitamo-nos. Ele, por cima de mim, guiou o pênis até a entrada de meu sexo e o esfregou ali, melando-se em mim, fazendo deslizar ao redor do meu clitóris. Poucas vezes - até então - havia sentido prazer daquela forma. Assim que entrou, investiu forte contra meu ventre, de modo lento, ritmico. Pude senti-lo inteiro na carne, preenchendo todo o espaço que tinha por dentro, com uma mão por baixo do meu corpo, apertando minhas nádegas, e a outra afagando meus cabelos, romântico, como se eu fosse seu amor. E o gesto arrebatou-me tão abruptamente que caí em prantos, soluçando descontroladamente. Sentia, no fundo, uma necessidade de amor que não encontraria naquele lugar, naquela cama, naquela condição. Eu era paga para amá-los, para fornecer satisfação do amor sexual que não tinham em suas casas, com suas recatadas esposas. E nisso, eu os satisfazia plenamente, a ponto de que disputassem minhas noites com lances caríssimos, como num leilão.

O estrangeiro continuou em mim, beijando-me ternamente os lábios, o rosto, os olhos. Não há nada mais terno do que o beijo nos olhos - disseram-me certa vez. E a ternura foi aplacando meus soluços, acalmando-me e inflamando a carne novamente. Apertei-o entre as pernas e ele parou por um instante, fechando os olhos e soltando um gemido de prazer. Passou a mover-se ainda mais lentamente, parando, vez ou outra, para que eu o apertasse por dentro. Ele latejava dentro de mim, desesperado, mas sem perder a brandura dos movimentos. Abriu os olhos e aproximou-se de minha boca, encostando levemente os lábios nos meus, intensificando as investidas, firme, fundo e lento. Eu me empinava para junto dele, para senti-lo em todo corpo, para que estivesse mais fundo que qualquer outro homem. E nossos sexos tomaram vida própria, quase desprendendo-se de nossos corpos, serpenteando até a proximidade do orgasmo. Disse palavras em sua língua e me arrebatou com uma intensidade tão grande que posso dizer que morri em seus braços.

E o estrangeiro partiu em silêncio, levando um pouco de mim consigo, mas não antes de desenhar um pequeno coração em meu ventre com o batom vermelho que repousava sobre a penteadeira.

Na cama, o pagamento pelo amor de uma noite e os despojos de nossa "petit-mort".

domingo, 7 de dezembro de 2008

sobre o inferno...

Sabia que ali era o inferno. Avistei o demônio - não o do outro, mas o meu próprio. Ele sorriu e estendeu-me a mão. Achei-o terno. Fechei os olhos e deixei que me conduzisse.
Agora, afogada em lava, tento achar o caminho de volta à superfície.

sábado, 6 de dezembro de 2008

desvario...

Quando minh'alma afastou-se de mim, tu vieste. Vi meu reflexo do outro lado, de onde a extravagância parecia mais atraente. Deixei-me seduzir pelo ato de loucura, pelo instante de perturbação, pelo medo. E o escuro causou-me um deleite orgástico, e pude sentir o quanto me satisfazia estar imersa em ti.
Quando minh'alma afastou-se de mim, tu vieste, ó, sombra!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

sempre...

Havia uma acidez insistente na saudade.
Havia todo o tempo
que não se mede
em apenas algumas palavras.
Havia o silêncio e a surdez.
Havia o abandono e o esquecimento.
Havia o amor e a mágoa.
Havia também a dúvida constante.
Há um espaço certo e pronto,
um corredor com várias portas.
Há a dúvida.
Há o medo.
Há a palavra e a ausência dela.
Há a posse, o ódio, o sal.
Há o mar.
Há a inconstância das marés
e a leveza da alma.
Há o grito mudo.
Há o fogo.
Há a morte.
Há noites insones e vigília.
Há o gozo.
Há o vazio e a punição.
Há a memória e o recomeço.
Sempre.