EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Virgine: carta ao psicanalista

Virgine, logo após iniciar a terapia, depois de várias sessões infrutíferas - pois não conseguia falar - resolveu escrever ao psicanalista as coisas que passavam por sua cabeça durante os 50 minutos em que se encontravam semanalmente. Essa foi a primeira carta:

Descobri-me diferente ainda muito jovem. Perguntava-me diante do espelho o que era aquele grande segredo que tinha certeza que guardava dentro de mim. Sentia que alguma memória perturbadora me acompanhava, algo que havia trancado dentro de meu calabouço pessoal.

As noites pareciam infindáveis punições, pois os sonhos me atordoavam incessantemente. Porém, quando despertava, as recordações fugiam novamente para o calabouço. Mas a sensação daquele grito contido dentro da garganta me sufocava cada vez mais. E a falta de ar era por vezes tão desesperadora que quase podia sentir os pulmões explodindo. Aquilo precisava sair; eu precisava respirar. E os dias passavam com imagens e lugares que eu já havia visto antes.

Outra noite. Outro sonho. Lençóis novamente encharcados ao meu redor. O ar era denso e pesado. Precisei sair do quarto. Mas a fobia não cessava. Precisei sair da casa.

A grama úmida do jardim parecia tão suave ao toque dos meus pés que, tão logo pude senti-la, uma lufada de ar fresco lambeu meu rosto e invadiu meus pulmões. Aliviada, deitei na grama e olhei o céu escuro salpicado de estrelas. Como era tudo tão imenso... e como eu me sentia livre fora daquele quarto escuro e sem ar.

Recordei-me de quando tinha 5 anos e passeava de mãos dadas com papai nos domingos ensolarados. Os parques pareciam tão enormes e eu corria pela grama com os braços abertos, ziguezagueando entre as árvores das vastas aléias. Ele vinha correndo logo atrás, me deixando ganhar, fingindo que eu era muito mais rápida que ele. E quando chegávamos à outra extremidade, ele se jogava no chão e dizia que estava acabado, completando: "Você é uma lagartinha mutante, Virgine! Vai se tornar uma maravilhosa borboleta e voar, voar, voar..." É a última recordação que tenho de minha infância. E de meu pai.

Depois disso, só me lembro da adolescência, de ter vivido com meus avós numa cidadela de poucos habitantes e de ter ido para a capital francesa para cursar a universidade. Desde então vivo só. Porque quando estou comigo, não me sinto solitária; é uma mistura de paz e doce melancolia, um estado de quietude de alma.

Quando estou sozinha mergulho em mim, porque preciso lembrar quem eu sou, preciso conhecer a Virgine que fui. Preciso abrir o calabouço e descobrir meu próprio segredo. Preciso enfrentar meus próprios demônios. Por isso estou aqui hoje.

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