EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

diário de Salomé: o assassinato

Mesmo com a certeza absoluta de que Salomé entragara-se inteira a ele, havia uma mágoa, um medo que o corroía por dentro. Salomé tinha um passado que estaria sempre presente. Não havia como apagar do tempo e do espaço a mulher que havia sido Salomé, a meretriz. Ainda depois de ter abandonado a vida de puta, ainda depois de ter descoberto o amor em seus braços, ainda depois ter prometido ser a mulher de apenas um homem, ainda assim, um gosto amargo habitava a boca de seu jovem amante.
*
"Estive muito ocupada, desde detalhes comuns à dona de um estabelecimento comercial ao pequeno contratempo da gravidez de uma das meninas. Uma grande tolice, devo dizer. Minha mãe ensinou-me desde meu primeiro dia no meretrício a cuidar para que essa desgraça não se abatesse sobre mim. Não que uma vida gerada no corpo de uma mulher seja algo desgraçado, mas falo de um rebento de um bêbado ou velho germinando acidentalmente no ventre de uma puta. Nós sabemos disso. Nós somos pagas para gerar prazer, e não filhos.
Culpo a mim somente pelo ocorrido nesses dias. Ocupei-me tanto de assuntos pequenos e fúteis que não soube notar que algo acontecia dentro dele. Minha casa ainda é um prostíbulo e não há como mudar essa realidade. Eu só conheço essa realidade - desde os 11 anos. Se tivesse percebido o turbilhão, a tempestade surgindo, tudo teria sido resolvido. Talvez ele só precisasse de mais um pouco de minha atenção, de meu tempo.
Naquela noite eu acabara de descobrir que a pequena estava grávida. O dia havia sido muito difícil. E ainda havia o importúnio dos velhos clientes que tentavam exigir - pobres diabos! - que eu ainda me deitasse com eles. Eram pedidos em tons de exigência, como se lhes devesse alguma coisa. Hipócritas! Desde que me deitei com aquele velho decrépito pela primeira vez houve poucos dias em que não precisei me submeter aos caprichos dos homens que eu odiava. Obviamente essas investidas geravam um desconforto imensurável em meu amante; mais que desconforto, uma ferida no peito.
A porta de meu quarto abriu-se e lá estava novamente o estrangeiro. Um sorriso iluminou meu rosto - acredito que ele tenha sido o primeiro cliente que não me despertou repulsa. E por mais furtivo que tenha sido nosso único encontro, guardei dele uma boa recordação. Mesmo assim, tudo havia mudado. Não era mais a mulher que o recebeu na cama. Era uma outra Salomé, apaixonada, diferente. Mas as putas serão sempre putas; essa é uma realidade imutável.
Caminhei de encontro a ele e o abracei. Havia muito tempo desde a noite em que nos conhecemos. Mas o abraço foi desfeito pelo bruto arremesso do estrangeiro de encontro a parede. Lá estava ele, meu amante, com o ódio estampado nos olhos, ardendo de toda a raiva possível. Antes que pudesse abrir a boca, a garganta do estrangeiro estava aberta, despejando todo o sangue de seu corpo em meu carpete também vermelho.
Os olhos de meu amor transbordavam e seus soluços tomaram conta de todo o cômodo. As mãos sujas eram passadas seguidamente nas vestes na tentativa de limpar o sangue. Aproximei-me lentamente, falando baixo, puxando-o de encontro ao meu corpo...
E enquanto o corpo do estrangeiro esfriava na poça vermelha, meu amante me beijava, desculpando-se, tornando-me cúmplice de sua loucura..."
*
O corpo do estrangeiro foi escondido e enterrado onde não pudesse ser encontrado. Mas nada podia abalar o que sentia. Decidira partilhar tudo, até a desgraça. Porque não houve e nunca haveria alguém que pudesse fazê-la sentir uma mulher inteira, tão cheia de pecados e tão livre deles ao mesmo tempo. Não haveria outro homem que fizesse de seu corpo uma extensão da alma que ela não sabia que existia.
Além do amor sem limites, Salomé dividia com seu amante a partir daquele dia uma culpa que se comparava ao aborto que providenciava no bordel. De certa forma, naquela noite Salomé havia matado duas vezes.

3 comentários:

henrique (geminilibre) disse...

Caraleo...
E eu cantando as coisas da mente...
xD
ahuahauhauhauahuah


Putz, eu sou bonzinho perto do que você pensa.
:D
hauahuahuahuahauha
Mas tenho um projeto à James Joyce, sacas?
:D
Deve ficar pronto em breve... Eu critico até eu mesmo... se duvidar.
:D

I'm Nina, Marie, etc... disse...

"Am i evil"?
Você realmente me acha perversa?
Talvez eu seja um pouco pior, Henrique... Talvez a Salomé realmente exista... Talvez o amante dela seja realmente cruel e passional... Quem poderá saber?
Eis o grande mistério...
:D

E agora José? disse...

Mean and passionate. I am what I am, what I am, what I am...