EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

sobre coisas simples


Ela escolheu cuidadosamente duas garrafas de vinho para aquela noite. Não havia avisado que faria algo especial, pois queria surpreendê-lo. Estavam há algum tempo juntos - tempo suficiente para incluí-lo em seus planos. 
Resolvida a questão do vinho, tratou de escolher as músicas que tocariam aquela noite. Queria que tudo fosse perfeito - talvez não perfeito, mas diferente. Sabia que era preciso ir além das coisas rotineiras como o bom sexo, a compatibilidade e a boa convivência para manter um relacionamento. 
Nada havia sido planejado, pois ela não era o tipo de traçar esquemas e planos; era tudo improvisado. Sua impulsividade a tornava especialmente atraente.
O ambiente parecia perfeito: boas músicas escolhidas, um bom vinho, velas pela sala e um aroma amadeirado agradabilíssimo no ar. Faltava apenas saber o que vestir.
Não haviam casado justamente por não quererem algo convencional que se tornasse morno com o passar do tempo, e a decisão de não dividirem a mesma casa também era pela mesma razão. Apesar disso, viam-se quase todos os dias e ele havia dado a ela a chave de seu apartamento, de modo que ela poderia aparecer quando bem entendesse para dormir com ele ou apenas matar a saudade.
Não havia avisado que iria aquela noite e ela sabia que ele estaria trabalhando até tarde. Queria realmente surpreendê-lo.
Entrou no banho e percebeu que o shampoo estava no fim. Ele sempre deixava acontecer, e isso a irritava um pouco. Mas estava bem, feliz, ansiosa pela noite que terminaria no melhor sexo que jamais experimentara.
Secou os cabelos e dirigiu-se ao armário; buscou uma camisa social dele e vestiu, sem nada por baixo.
Sentou-se no sofá e deixou a música tomar a sala, bem baixinho, sorrindo e lembrando de coisas que haviam passado juntos. Como todo casal, tiveram momentos deliciosos e miseráveis. Mas no final tudo acabava com um beijo e a promessa de que não se magoariam novamente.
O celular tocou dentro da bolsa.

- Alô?
- Oi, meu amor. Hoje é aniversário de um dos rapazes. Estamos tomando uma cerveja. Não tenho hora pra voltar. Você vai lá em casa hoje?
- Ahn... não sei... talvez...
- Tudo bem. Se não quiser, não precisa me esperar. Te dou um beijo enquanto você estiver dormindo. Te amo, viu?
- Ahãn... tudo bem. Mas acho que então não vou lá, não. Amanhã nos falamos então. Divirta-se.

Guardou o celular com o coração apertado e mortalmente ferida. Não havia o que cobrar, pelo o que brigar, o que questionar. Tinham tudo e não tinham nada. Haviam feito um pacto de liberdade. 
Recolheu as velas, desfez a mesa, guardou os cd's. Pôs novamente a camisa no armário e se vestiu. 
Pegou as chaves e, antes de sair, olhou novamente a sala, com um sorriso amargurado no canto dos lábios.

- É... eu também te amo.

E partiu.

POSTADO POR NINA


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