EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Manhãs


Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro
.
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
.
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
.
Ela me beijava o membro
.
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte
.
Morte e primavera em rama
disputavam-se na água clara
água que dobrava a sede
.
Ela me beijava o membro
.
Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido
.
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
.
Ela a me beijar o membro
.
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
.
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
.
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
.
como beijava uma santa
no mais divino tranporte
e num solene arrepio
.
beijava beijava o membro
.
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
.
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
.
Ela me beijava o membro
.
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
.
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longíquo
e uma cidade se erguia
.
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
.
Para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
.
e me tornava disperso
todo em círculos concentrícos
na fumaça do universo
.
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro.
.
Carlos Drummond de Andrade
.
.
Era primeira noite de janeiro
e
ela me beijava inteiro
.

pessoas na praia cantavam
coros embriagados celebravam
ela me beijava o membro
.
O meu tempo perdido
o meu tempo ainda futuro
cruzados em um só rumo
.
Ela me beijava o membro
.
Uma esfinge cantava
bem dentro do peito
dentro, do coração, de mim, da morte
.
Vida e morte em trama
regados em nossas almas
água que aumenta a sede
.
Ela me beijava o membro
.
Tudo que eu tivera sido
quando eu ainda não era inteiro
não formava sentido
.
Somente a rosa crispada
e eu beija-flor ardente em chama
o êxtase na cama
.
Eu a beijá-la por dentro
.
Dos beijos era o mais íntimo
Beijava, beijava com sentimento
.
Pensando nos outros homens
eu os odiava e tinha pena de todos
sombras e testemunhas de tudo
.
Meu império se estendia
por toda a cidade deserta
deuses em uma ilha
.
Ela me beijava o membro
.
O prazer de viver
o mistério de amar
o encontro amoroso de gozar
.
Eram todos, ondas caladas
morrendo num caís distante
e algo se erguia
.
salvo da letargia
e de alma apaziguada
espasmos com o beijo da brisa
.
Furtando-me do sono
desfolhando-me o corpo
como um animal sua sede sacia
.
me tornava rijo
ao som do seu litígio
me perdia no universo
.
Beijava o membro beijava, e me matava beijando
.
.
José Rodolfo Klimek Depetris Machado

Um comentário:

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Na primeira noite de janeiro, eu te beijarei inteiro... E vou te matar beijando, beijando, beijando...
Drummond que me perdoe, mas sua versão-presente é simplesmente maravilhosa...
Obrigada, meu bem...