EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 23 de janeiro de 2010

something i dreamed last night

A porta fecha-se atrás de você. Estamos confinados. Nós e John Coltrane. Teus olhos de fundo de rio - porque nunca sei bem dizer a cor que eles têm - encontram meu olhar de argila, esse castanho vítreo que dizem. Esvazio o copo pela sétima vez e, nas pontas dos pés, alcanço tua barba mal feita. Sinto teus cheiros. Te inspeciono, embriagada. Perdoe-me se pareço permissiva, mas Coltrane me deixa mais leve, aberta, hormonal. De olhos fechados percebo cada nota - a peculiaridade do cheiro da tua boca, aquela mistura intrigante de madeira ralada e hortelã, o cheiro da roupa, o cheiro da pele - e sinto cada pulsar do sangue no teu corpo, qual bicho. Derreto-me em teus olhares, teus pensares. Escorrego - liquefeita e alcóolica. De joelhos, adoro-te com graça. Confinado entre paredes acolchoadas, você se descobre inteiro - um refúgio quente e macio - alcova das suas neuroses e minhas loucuras. Mas suas neuroses dissipam-se enquanto o desejo se afoga em saliva, bile, raiva, amor. E teu corpo salta a cada reverberar-gemido nas paredes mornas do espaço apertado da minha boca. Tortura osculante. Minhas loucuras me libertam, te libertam, arrastam três ou quatro pudores ao pequeno inferno da intimidade. E tuas mãos descobrem tua própria força - um mundo novo. Minha boca. Invasão. Barbárie. Deleite. John Coltrane.

Nenhum comentário: