EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Anaïs - parte IV: o apartamento

Abriu a porta do apartamento com o molho de chaves que Anaïs não conseguia manipular com as mãos trêmulas. Sorriu ao se deparar com a desorganização do apartamento, estranhando as notas amarelas espalhadas pelo chão e grudadas nas paredes. Os cinzeiros lotados denunciavam que o apartamento não era limpo há algum tempo.
- Onde fica a cozinha?
Anaïs apenas indicou a direção com um gesto de mãos, sem tirar os olhos dos pés. "Por que ele não me quer? O que eu fiz de errado? Droga, preciso fazer as unhas..."
Ficou pensando se devia mandá-lo embora de uma vez por todas ou se deveria levar adiante a ideia estúpida de que só dormiria se ele a comesse. Sabia que no fundo não se tratava disso, não se tratava de uma carência absurda - pelo menos era o que repetia em sua cabeça. Tratava-se apenas de uma questão de orgulho ferido, de desafio, de provar a ele - e inconscientemente a si mesma - que era soberana naquele mundinho de merda, naquele espaço infinitamente reservado e vazio.
- Vai ver você não é psiquiatra forense porra nenhuma...
Ele apenas riu, voltando da cozinha com duas taças do vinho que havia trazido.
- Sim, vai ver que sou um psicopata com sérias tendências homicidas... Enfim...achei as taças no armário da cozinha. Você vai beber? Se preferir, posso beber um pouco das duas taças pra você ter certeza de que não envenenei sua bebida... - completou, tentando conter o riso.
- Você é um grande filho da puta... O que eu tenho de errado?
- Um monte de coisas.
Aquela era a resposta que Anaïs não esperava ouvir.
- Por que você faz isso comigo?
- Não fiz nada. Você perguntou, eu respondi. Ou realmente acha que eu diria que você é perfeita?
- Sim.
- Errado.
- Você é um babaca.
- Eu sei.
Anaïs virou a taça de vinho de uma só vez. O homem dirigiu-se novamente à cozinha e voltou com a garrafa. Encheu o copo de Anaïs.
- Eu não sei o seu nome.
- Você não me perguntou, Anaïs.
- Eu não te disse meu nome também. Que porra é essa? Você é algum maluco? Como você sabe meu nome?
- Seu chaveiro tem o seu nome. Ou você divide o apartamento com alguém?
- Eu te odeio!
- O mundo existe, Anaïs. Apesar de você, o mundo existe...
Anaïs estava ferida. A taça de vinho foi lançada à parede e seus punhos fechados batiam contra o peito daquele estranho que insistia em insultá-la, como se alguém tivesse acendido as luzes do palco - do seu palco particular - no meio do espetáculo.
Ele agora deixava de ser afável. Segurava os punhos de Anaïs com força, empurrando-a contra a parede.
- Não, não quero mais você. Me larga. Me deixa em paz. Eu preciso fumar, me larga!
E quanto mais ela resistia, mais força ele usava. Agarrou Anaïs pelos quadris e a suspendeu de encontro à mesa da sala, ignorando as recusas entrecortadas por soluços.
- Me larga, seu filho da puta... Eu... vou gritar... - a voz tremia.
Anaïs imaginava que aquilo fosse alguma forma de tortura, que ele fosse parar novamente quando ela começasse a chorar. Mas ao invés disso, abriu suas pernas e se colocou de joelhos entre elas, ainda segurando os pulsos de Anaïs com apenas uma das mãos, lambendo e mordendo a parte de dentro das coxas, enquanto as súplicas eram substituídas por arfares e espasmos de corpo inteiro.
-  Por quê? Por que você faz isso comigo? Eu ... te odeio...
E a boca afastou-se por um instante suficientemente breve para balbuciar:
- Porque você é louca, Anaïs...

[continua...]

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Nem sempre minhas inspirações são bonitas.
Nem sempre eu quero uma casa no campo ou uma palavra. Às vezes basta sentir a boca arder e deixar que o resto se foda por um ou dois dias. Por uma pequena eternidade que pode ter seu curso alterado a qualquer segundo, como bala perdida.
Tudo muda, sem exceção.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

falares

Palavras à deriva
mar sob os pés
e nuvens por dentro das pálpebras.
Falares fluidos, desconexos,
polissemias bailantes
cheias de si
- verdades e temores -
certezas do infinito que não há,
do futuro que não chega,
do passado que não parte.
O grito que vibra
o choro que rompe
o gemido que corta
a palavra que fere.
Falares mudos,
pensares úmidos
e pulsantes.
Olhares perdidos
entre súplicas mal entendidas
e desejos em carne viva.
Verdade. Mentira.
Qualquer punhado de vida.