EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Anaïs - parte VI - o dia

A luz do dia alto a acertava em cheio na cama. A janela do quarto estava aberta e o barulho da rua anunciava ser hora avançada. "Merda de dor de cabeça..."
O dia estava insuportavelmente claro e Anaïs precisava cumprimentar a claridade aos poucos, enquanto colocava os pensamentos tortos em ordem. "Eu não comi porra nenhuma ontem à noite", reclamava. Ele não estava na cama.
Levantou-se e andou nua pela casa, tentando não fazer barulho - estava assustada, sentia medo daquele homem estranho. Realmente não lembrava seu nome - tinha quase certeza de que ele não havia dito. Não que sua cabeça funcionasse bem, mas lembraria o nome. Ele não estava no apartamento.
Procurou as chaves, foi até a porta. Ele havia sumido sem deixar vestígios. Aliás, havia deixado vestígios, sim - no corpo, na merda de cabeça perturbada de Anaïs, nos lençois, na taça de vinho ao lado da sua.
"Esse filho da puta fodeu a porra da minha cabeça e foi embora... "
Procurou qualquer sinal de que talvez ele voltasse, um telefone anotado, um bilhete dizendo "já volto", uma carta de amor. "Por que pensei em carta de amor?" A cabeça latejava. Precisava de café. O peito saltava, a boca estava seca, as mãos tremiam - estava ansiosa, desesperada, apaixonada, sentindo ódio mortal. Às vezes pensava em morrer. Lembrou-se dos fantasmas e correu os olhos para o canto da sala. Ainda estavam lá. Conferiu tudo e nada estava fora do lugar. Ele não sabia do seu segredo. Mas também não sabia quem ele era ou o que poderia estar escondendo. Era um intruso e invadia a intimidade de Anaïs com uma autoridade inegável, como se a visse pelo avesso, como se pudesse antecipar seus pensamentos. Sentia medo de pensar perto dele, medo de que ele ouvisse o silêncio de suas maquinações absurdas e doentias. Queria matá-lo. Queria silenciá-lo para que não pudesse mais surpreendê-la ou fazer com que se sentisse rechaçada, rejeitada, abandonada. Queria que ele morasse dentro dela. Acendeu um cigarro. Lembrou do que havia comprado na delicatessen.
Enrolada no lençol, abriu uma garrafa de vinho e levou para o quarto. Colocou as sacolas que estavam na geladeira sobre a cama desarrumada e cheirando a sexo. Comeu. Acendeu outro cigarro. Voltou para a sala e Al Green a esperava, louco para cantar para ela. Sentiu-se culpada por tê-lo trocado por outro homem na noite anterior. "Você não me abandonaria, não é? Eu sei, querido... Perdoe-me..."
E tudo parecia estar bem novamente, com a voz conhecida e sempre mansa a fazer melódicas confissões de amor no meio do dia. "Eu amaria Al Green...", sussurrava, louca. Estava vazia. Com exceção do barulho dos carros do lado de fora e da música do lado de dentro, todo o resto parecia desastrosamente silencioso. Pensava nos seus pecados, nos seus crimes de ser. Conhecia-se e se estranhava na mesma proporção. Mas não sabia de onde vinha aquela dor, tinha medo de saber. Porque gostava de esquecer das coisas que maltratavam sua memória, sua carne, seu estômago sempre prestes a derramar os restos amargos de alguma dor ou descontentamento - Anaïs era cheia dessas coisas. Sabia, no fundo, que nada exterior a afetava a ponto de torná-la miserável, mas gostava de imaginar que seus sentimentos vinham exclusivamente do que os outros ofereciam - e não de sua própria miséria, de sua própria debilidade, de seus próprios vícios e incompreensões. Sentia-se infeliz naquele instante e culpava o outro por ter entrado aos solavancos em sua vida. Não conseguia respirar. Estava à beira da histeria. Estava exagerando novamente. Sentia-se sozinha. Estava sozinha. Queria vomitar o mundinho pequeno. Queria não sentir saudade. Queria que ele não fosse indiferente. Queria mais um pouco de vinho. Era cretina em seus pensamentos.
O relógio marcava duas da tarde e Al Green já havia se calado. Restava, então, o barulho dos carros. E o silêncio de dentro do seu mundo. E isso fazia os ponteiros correrem mais lentos, como se estivessem girando na lama do tempo. "Preciso pintar o apartamento", pensou. "Preciso mesmo é de um copo de morfina ou de veneno, porque o vinho já não me anestesia mais...". E todas as inutilidades e futilidades da vida socavam as horas do dia partido - porque algo havia se perdido no meio da sua crise escaldante.

[continua]

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