EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 9 de março de 2011

o amante

Clementine entrou escorregadia naquele quarto. O mundo emudeceu nublado e cinzento do lado de fora da brancura. O tempo não havia realmente passado - porque sabia que era apenas um conceito não-sentido usado pelos normais para criar justificativas e finalidades ansiosas. Clementine sentia apenas que estava repleta de um tempo perene, incessante, sem pontuações, justificativas ou paradas. E tudo fazia muito sentido porque não buscava sentido nas coisas - encaixes perfeitos de vícios tortuosos e sorridentes. E sempre havia continuidade do ponto onde haviam parado, como se tivesse acabado de se despedir daquela cor que adorava nos olhos do outro. Era sempre um estado de ímpeto, de calma, de desejo - o estado de todas as coisas, de todos as maneiras. Despia-se mesmo antes de estar completamente nua, sem palavras ou conversas prolongadas. Sentiam-se antes da proximidade dos corpos. As peles sorriam, esperançosas e acesas - iluminavam a árvore, a parede, o dia. Deslizou lentamente para junto do outro corpo, feito serpente, feito gato, feito bicho bonito. E então não havia mais paredes, não havia mais teto, não havia mais árvore, não havia mais pensamentos. O foco estava nas sensações de pele, de resposta imediata do seio ao toque, de línguas, de pulso vibrante abaixo das cinturas, onde entendiam-se os sexos e encaixavam-se os desejos nunca contidos dos sempre-amantes. Ele se acolhia trêmulo no refúgio quente e macio de Clementine, longe de todas as neuroses do resto do mundo. E Clementine o recebia de coxas-portas abertas - anfitriã-meretriz amável e molhada. E seus orgasmos começavam no momento em que seus sexos se cumprimentavam em línguas, antes de qualquer invasão, antes de qualquer barbárie. Era um gozar mesmo sem gozar, um gozar permanente de delícias de pele e amor. Um gozar de ais gemidos e sussurrados e contidos. Era um gozar que Clementine só experimentava naquele quarto - porque aquele quarto era qualquer lugar onde o outro estivesse -, naquele corpo, naquele tempo que só existia quando estavam em transe magnético. Não havia maledicências - as más palavras apenas exprimiam o jorrar orgástico e sorridente dos corpos. Os medos foram expulsos definitivamente - havia sustos deliciosos e entregas consentidas de corpo inteiro [um desejo de violação e conquista de todos os cantos que o amante pudesse tomar]. E o prazer arrastava-se e passeava por sensações e choques térmicos avassaladores propiciados pelas línguas perversas dos amantes - o frio doce tornava-se quentura instantânea e torturante que vertia em sal líquido na boca de Clementine. E as pequenas confissões nuas e suadas proferidas pelos lábios em estado de graça enchiam o peito da pequena de sorrisos e desejos.

Clementine levantou-se com o dia. Vestiu-se e beijou o sorriso e os olhos adormecidos do outro, dizendo-lhe segredos e fazendo confissões que ele não lembraria depois que acordasse - ele despertaria apenas com a sensação da paz turbulenta e sexual que Clementine deixara no quarto, nos lençois, no cinzeiro. 

Clementine ganhou a rua. Sentiu saudade. Desejou loucamente que ele não partisse para nenhuma terra distante.

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