EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

saída de emergência

não há rota de fuga
ou saída corrediça pelas escadas
não há escadas
ou plano de escape
há uma pequena fresta
por onde passa a luz
ou por onde se vê a sombra
uma ranhura
de se passar a língua
- fresta escura -
há uma direção
e todos os sentidos
fluxo desatinado
e pulso efervescente:
saída de emergência ao centro
- minha bússola desencontrada.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

paraíso

amanheço lilás
germinada
enquanto dormes teu sono bonito
com esse meio sorriso inconsciente
de sonho
de gozo
de vinho
e te desenho com meus olhos
te verbalizo
porque teu sono me enche de paz.

amanheço simples
inteira
mas deixo meu cheiro no teu mundo
meu gosto nesse sorriso
onde sorri sussurros
gemidos
palavras sujas
e tempestades avassaladoras
que trazem a paz
do teu paraíso encarnado
quando repousas teu amor
sobre meu templo de carne.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Fodi todos os poetas que conheci
todos os músicos que ouvi
todos os artistas que apreciei.
Pulei na cama de Drummond
de Vinicius, de Bocage,
Henry Miller, Sartre,
Kandinsky, Picasso.
Trepei com todos os filósofos que me desejaram
com todos os boêmios que me alvejaram
com todos os perdidos que me quiseram.
Homens complexos, sempre complexos,
desatinados no pensar livre
abandonados por suas razões sórdidas
- ou desafiados por elas.
Sou puta verborrágica - disse-me aquele filósofo
que nunca me tocou a pele.
Sou meretriz de verbos e vícios e letras ensanguentadas
- alma desgarrada de pedra e vidro e algodão.
Sou musa torta e torpe e cretina
sou vários nomes, vários atos, várias línguas.
Sou essa carne teimosa, alcoolizada, vadia.
Sou Nina, Marie, Clementine, Juliette, Hermínia.
Sou a presença, o presente, o passado, o esquecimento,
esse fogo que queima louco, fundo, forte
essa lava, essa fluidez de várias sílabas,
esse medo do escuro.
Sou o amor total.
A canção.
A palavra maldita.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

reflexo

Há uma atração pelo inusitado que me assola. 
Esbarramo-nos por acaso, porque o universo decidiu que era tempo de conspirar a favor. Não há coincidências. Poderíamos ter apenas falado de revoluções, política, ou sobre indecências nas cinco línguas que falamos juntos. Gosto quando escrevemos nosso livro, quando completamos - sem querer - o que o outro havia escrito. Gosto quando leio teus pensamentos - confesso que tento esconder os meus. Mas o que me atropela mesmo é esse teu sotaque bonito, o cabelo em desalinho, os traços retos do rosto, o corpo sem pelos. Adoro nosso gosto pelas mesmas coisas - o péssimo gênio compartilhado. Gosto da intelectualidade, da virilidade, do sexo. Gosto quando dizes que me odeia, louco para me amar outra vez. Gosto quando dizes que sou a mistura de anjo e puta, quando confessas que das dezenas de mulheres que passaram pela tua cama, sou a melhor, a mais livre, a mais entregue - porque sou bruxa e sei predizer teus desejos. Gosto do jeito que você me machuca. E você, sádico confesso, me diz que na primeira vez que pousou os olhos em mim seu desejo primal foi o de me machucar. 
Quando olho para você, reconheço-me - vejo-me no espelho. Você, meu alterego.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

antes, agora, depois

Amor é fácil. Difícil é amar. Porque amar é coisa de gente e gente é um troço complicado de lidar. O que deveria, então, ser doce, livre e leve, acaba se tornando pesado, desgastado, desgostoso. Muito disso acontece por causa das garantias que são exigidas pelos amantes, como se o amor estivesse pendendo em vitrines e pudesse ser comprado com cheques pré-datados.

- Promete me amar?
- Sim. Eu te amarei feito louca essa noite.
- E depois? 
- Amanhã quando você acordar eu não estarei mais aqui.
- Por quê?
- Porque amanhã é futuro.
- Mas o que tem isso? Você acaba de prometer me amar...
- Sim, eu prometi. Minha promessa está conjugada no passado, notou? Eu prometi num presente transbordado de desejo. Eu te desejei quando prometi. Eu te desejo exatamente agora - desejo feito louca. E quero que você me foda, que faça amor comigo agora, pelo tempo que durar. Porque não posso te prometer amor amanhã. Amanhã ainda não chegou e não posso fazer promessas ou previsões. Então eu te quero agora. Quero que você me ame loucamente agora também, como se amanhã não fosse chegar nunca...
- Você é louca... Toda mulher quer uma garantia de compromisso...
- Sim, eu sou louca. Mas não quero o que toda mulher quer. Não quero garantias. Quero exatamente o que você quer me dar agora - porque seus olhos estão acesos, sua boca me mostra os dentes e você me deseja de um jeito que me excita. Então, cale a boca e me beije logo... Porque enquanto falamos o presente vai passando ligeiro por nós, e começamos a viver o que era o futuro há alguns instantes... Corra, meu bem... Não quero que chegue logo amanhã...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

i am gasoline!

Tenho gosto pelos livres, libertários, libertinos... Essa carne não vai para os fracos de espírito, para os medrosos, para os amedrontados, para os racionais. Esse gosto de liberdade não vai andar na boca dos que falam baixo, dos que andam devagar, dos que têm medida para tudo, dos que fazem planos. Não quero calma, não quero calar a boca, não vou sentar direito. Quero é andar descalça e queimar os pés no chão quente! Não quero saber do futuro. Não gosto de hipóteses baratas ou filosofia de gente que vive escondida. Não gosto de gente que finge valentia, que finge bondade, que finge ser gente. Não gosto de hipocrisia. 
De resto, nada mais me move. O que é morno, se apaga. Quero chama: preciso de combustível, gasolina, fósforos!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

fundura

Vejo teus olhos e me faço perguntas estúpidas. Pergunto-me que cor eles têm. Pergunto-me que cores tu tens. E nessa de te descobrir, desenho tua boca para contrastar com os olhos - contrastes mais de linhas que de cores. E teu desenho vivo me assombra, me assusta essa porção do dia em que escureço o desejo flamejante e antagônico de terra de fundo de rio, onde derreto e despejo a argila dos meus olhos, minha cor incógnita que te enlouquece o juízo e te derruba e te faz querer o que foi lançado ao mundo. Sou o desconhecido mundo e tu és a cor sem nome que só existe em teus olhos. E tu espumas de raiva em meu útero e me beija a boca para me roubar o fôlego e um pouco da alma. Minha alma de rua te envolve em desapego desespero destemor. E teu medo coragem te lança de encontro ao meu muro meu mundo cimento feito de pele. E tu te fundes e me machuca me incendeia me esfria me abandona depois do gozo. E me perco labiríntica nessa tua imensidão - teus olhos me tragam pro fundo asfixioso dessa cor hipnótica. Cubro teus olhos. Volto à superfície.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

wicked things...



The world was on fire and no one could save me but you
It's strange what desire will make foolish people do
I never dreamed that i'd meet somebody like you
And i never dreamed that i'd lose somebody like you

No, i don't want to fall in love
(this world is only gonna break your heart)
No, i don't want to fall in love
(this world is only gonna break your heart)
With you 
(this world is only gonna break your heart)

What a wicked game to play, to make me feel this way
what a wicked thing to do, to let me dream of you
what a wicked thing to say, you never felt this way
what a wicked thing to do, to make me dream of you
...

castigo

Perdoa-me se te tomo de assalto
- sem escrúpulos -
se desfaço essa névoa em teus olhos
- se te derreto -
se procuro um verbo, um tempo, uma cor
se conjugo coisas erradas, se me dobro
perdoa se te desdenho,
se finjo que te abandono e te procuro
perdoa se digo que te amo e depois calo
perdoa se sou combustível e apago
perdoa meu silêncio, minha angústia, meu medo
perdoa minha falta de caráter
meu excesso de loucura
minha ferida de desejo
perdoa se sou estranha
se me enfio no meio de tuas coisas
se te machuco
se choro
se agonizo tua ausência
se alcoolizo minha miséria
se maldigo teu nome
se mordo teus livros
se ouço tua música.
Perdoa minha falácia
meu vício
minha inconstância
a voz embargada
que diz em silêncio
o que os olhos
já se cansaram de saber.
Perdoa-me se te fodo em pensamentos.
Perdoa por querer te rasgar a pele
te cuspir maldades
te levar pro espaço.
Perdoa-me.
Castiga-me de novo amanhã.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ainda no quarto 214

Foi no quarto 214 que se apresentaram. Como se estivessem começando ali o que havia sido antecipado de outra forma. A intimidade espalhava-se pelas paredes feito tinta, galopando alucinada pelas veias. Ele dizia o quanto a desejava cada vez que lhe acertava o rosto com força, cada vez que sentia como ela era macia por dentro, como era quente, como ficava molhada com aqueles castigos de amor. E a fazia de puta e chamava de anjo naquele joguete de horas infinitas de gozo e garganta ardida de grunhir-gemer-gritar. E ela se abria com qualquer possibilidade de proximidade do meio de suas coxas, como se estivesse condicionada a obedecer ordens de coito a todo e qualquer instante. Queria uma definição para aquele sentir sem nome, para aquela fúria vermelha e encharcada e dolorida e vulcânica.
Desejava - no meio de seu transe gozoso psicótico - que ele fosse extremamente cruel - desejava que ele a matasse impiedosamente na cama do quarto 214.
Queria morrer no quarto 214.

Anaïs - parte VI - o dia

A luz do dia alto a acertava em cheio na cama. A janela do quarto estava aberta e o barulho da rua anunciava ser hora avançada. "Merda de dor de cabeça..."
O dia estava insuportavelmente claro e Anaïs precisava cumprimentar a claridade aos poucos, enquanto colocava os pensamentos tortos em ordem. "Eu não comi porra nenhuma ontem à noite", reclamava. Ele não estava na cama.
Levantou-se e andou nua pela casa, tentando não fazer barulho - estava assustada, sentia medo daquele homem estranho. Realmente não lembrava seu nome - tinha quase certeza de que ele não havia dito. Não que sua cabeça funcionasse bem, mas lembraria o nome. Ele não estava no apartamento.
Procurou as chaves, foi até a porta. Ele havia sumido sem deixar vestígios. Aliás, havia deixado vestígios, sim - no corpo, na merda de cabeça perturbada de Anaïs, nos lençois, na taça de vinho ao lado da sua.
"Esse filho da puta fodeu a porra da minha cabeça e foi embora... "
Procurou qualquer sinal de que talvez ele voltasse, um telefone anotado, um bilhete dizendo "já volto", uma carta de amor. "Por que pensei em carta de amor?" A cabeça latejava. Precisava de café. O peito saltava, a boca estava seca, as mãos tremiam - estava ansiosa, desesperada, apaixonada, sentindo ódio mortal. Às vezes pensava em morrer. Lembrou-se dos fantasmas e correu os olhos para o canto da sala. Ainda estavam lá. Conferiu tudo e nada estava fora do lugar. Ele não sabia do seu segredo. Mas também não sabia quem ele era ou o que poderia estar escondendo. Era um intruso e invadia a intimidade de Anaïs com uma autoridade inegável, como se a visse pelo avesso, como se pudesse antecipar seus pensamentos. Sentia medo de pensar perto dele, medo de que ele ouvisse o silêncio de suas maquinações absurdas e doentias. Queria matá-lo. Queria silenciá-lo para que não pudesse mais surpreendê-la ou fazer com que se sentisse rechaçada, rejeitada, abandonada. Queria que ele morasse dentro dela. Acendeu um cigarro. Lembrou do que havia comprado na delicatessen.
Enrolada no lençol, abriu uma garrafa de vinho e levou para o quarto. Colocou as sacolas que estavam na geladeira sobre a cama desarrumada e cheirando a sexo. Comeu. Acendeu outro cigarro. Voltou para a sala e Al Green a esperava, louco para cantar para ela. Sentiu-se culpada por tê-lo trocado por outro homem na noite anterior. "Você não me abandonaria, não é? Eu sei, querido... Perdoe-me..."
E tudo parecia estar bem novamente, com a voz conhecida e sempre mansa a fazer melódicas confissões de amor no meio do dia. "Eu amaria Al Green...", sussurrava, louca. Estava vazia. Com exceção do barulho dos carros do lado de fora e da música do lado de dentro, todo o resto parecia desastrosamente silencioso. Pensava nos seus pecados, nos seus crimes de ser. Conhecia-se e se estranhava na mesma proporção. Mas não sabia de onde vinha aquela dor, tinha medo de saber. Porque gostava de esquecer das coisas que maltratavam sua memória, sua carne, seu estômago sempre prestes a derramar os restos amargos de alguma dor ou descontentamento - Anaïs era cheia dessas coisas. Sabia, no fundo, que nada exterior a afetava a ponto de torná-la miserável, mas gostava de imaginar que seus sentimentos vinham exclusivamente do que os outros ofereciam - e não de sua própria miséria, de sua própria debilidade, de seus próprios vícios e incompreensões. Sentia-se infeliz naquele instante e culpava o outro por ter entrado aos solavancos em sua vida. Não conseguia respirar. Estava à beira da histeria. Estava exagerando novamente. Sentia-se sozinha. Estava sozinha. Queria vomitar o mundinho pequeno. Queria não sentir saudade. Queria que ele não fosse indiferente. Queria mais um pouco de vinho. Era cretina em seus pensamentos.
O relógio marcava duas da tarde e Al Green já havia se calado. Restava, então, o barulho dos carros. E o silêncio de dentro do seu mundo. E isso fazia os ponteiros correrem mais lentos, como se estivessem girando na lama do tempo. "Preciso pintar o apartamento", pensou. "Preciso mesmo é de um copo de morfina ou de veneno, porque o vinho já não me anestesia mais...". E todas as inutilidades e futilidades da vida socavam as horas do dia partido - porque algo havia se perdido no meio da sua crise escaldante.

[continua]