EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 29 de janeiro de 2012

Anaïs - parte IX

Antes que pudesse responder, viu-se envolvida por braços que surgiam por trás do seu corpo e alcançavam-lhe o sexo pela frente. "Não..."
As mãos faziam movimentos de maré bruta. O outro corpo parecia querer fundir-se àquela carne que tremia e desejava e se esquivava. As dúvidas se desfaziam em sua virilha, em suas nádegas, nas coxas que estavam bambas. O mundo parecia querer explodir... "Não, não é assim... Eu quero implodir...Eu quero um cigarro... Eu quero morrer..." E ele seguia bruto, firme, sério. Anaïs via o rosto dele através do espelho. Fechava os olhos e sabia exatamente cada músculo que tensionava. Sabia que mordia a própria boca, que desejava castigá-la mais um bocado por suas incertezas e seus medos. Queria exorcizá-la ou roubar-lhe definitivamente a alma - porque o corpo ele já havia tomado definitivamente.
- Eu não quero você. Você me machuca. Você me faz feliz. Você me confunde...
E cada vez que tentava resistir, sentia que ele a apertava mais, que a deixava imóvel, sem fôlego, sem rumo.
- Diga pra mim, Anaïs... O que você vê, querida?
- Eu... vejo você...
- Não, querida... conte-me o que você realmente vê... Ou vai esconder de mim, Anaïs?
As mãos bonitas seguravam os quadris de Anaïs com força de encontro ao corpo. "A janela está aberta... Desgraçado... Como ele entrou, afinal?" Não ouvia mais Carmina Burana tocar na sala. A voz de Al Green surgiu, então, feito mágica - seria testemunha de qualquer coisa que pudesse acontecer naquele quarto. "De onde está vindo a música?" Com os dentes dele cravados em sua nuca - feito bicho - e as mãos em qualquer lugar entre o sexo e o culote, sussurrou:
- Você... está aqui... Quem trocou a música?
- Que música, querida? - soltou a nuca de Anaïs o suficiente para responder sua pergunta. 
"Vai chover. Eu preciso fechar a janela." Anaïs fechava os olhos e sentia que ele sorria cravando-lhe os dentes. O pulso latejava. O sexo latejava. A cabeça latejava. Curvou-se para frente para tirar a nuca dos dentes dele, de modo que as nádegas se encaixaram perfeitamente no molde do outro corpo.
- Assim, meu anjo... Venha cá...
Havia um tom diferente na voz dele. Havia algo cretino e mais viril do que antes. Havia um monstro por trás dos olhos, por dentro da pele. Anaïs riu.
- Vai fazer o quê? Me comer à força? - riu nervosa.
Uma das mãos segurou Anaïs pelo ombro, não deixando que se levantasse, enquanto a outra segurava a  cintura e conduzia seu corpo na direção da penteadeira. Debruçou Anaïs entre os badulaques de mulher, com o rosto virado para o espelho. 
- Vai fugir de mim, querida? - tirou lentamente a camisa e o jeans. Ela permaneceu imóvel, louca, cheia de dúvidas, sem saber se deveria correr nua pelo corredor e descer as escadas pedindo ajuda, ou se deveria permanecer ali quieta, em estado de ebulição silenciosa que toma conta dos suicidas. "Eu realmente poderia fumar agora. Acho que sinto medo..."
Debruçada sobre a penteadeira e com o rosto de frente para o espelho, sentia que ele acariciava sua bunda, seu quadril, suas coxas. As pernas tremiam tanto que mal conseguia se aguentar de pé - fosse de medo ou desejo. Seus dedos descobriram o sexo molhado. Outro meio sorriso. Anaïs sentiu, então, o corpo dele se encaixando em seu sexo, devagar, bem devagar. Olhava os olhos de Anaïs pelo espelho. Ia até o fundo lentamente, segurando Anaïs pelas ancas. Sorria. Ela sorriu de volta, desafiadora.
- Eu não te amo.
- Não, meu anjo?
- Não...
- Sabe, meu bem... você provoca coisas más em mim, devo admitir... [comia Anaïs com mais força] Eu conheço cada canto da sua cabecinha perturbada... [respirava forte entre uma frase e outra] Conheço tua carne... [as mãos apertavam Anaïs cada vez mais forte]
Antes que pudesse tentar se mover, ele abandonou-lhe o sexo e se meteu por outro lado.
- Filho da puta!
Anaïs sentiu doer. Sentiu que ele queria destroçá-la, que queria fazer arder o corpo - uma ardência diferente da que sempre sentia quando ele a tocava. 
- Quer que eu pare, meu bem?
Ele a comia por trás feito um animal, com tanta força que Anaïs, em alguns momentos, achava que fosse desmaiar.
- Olhe-se no espelho, Anaïs... Conte-me ...o que você vê... 
Anaïs olhava os olhos vermelhos pelo espelho, olhos vermelhos de choro, de desejo, de sangue, de vergonha, de amor.
- Por quê? - ela soluçava as palavras entre gemidos e grunhidos.
- Você me pediu pra eu te machucar... [ele fazia menção ao primeiro encontro, onde ela suplicava que ele a machucasse nas escadas do prédio] Você precisa que doa pra se sentir viva... [arfava] Antes eu não quis te machucar, Anaïs... [fazia mais forte] Mas você não me deixa outra escolha...
- Por favor...
- Eu quero te rasgar, querida... quero machucar você tão fundo... para que nunca mais esqueça o meu nome...
Anaïs realmente não sabia - ou não lembrava o nome dele. Não entendia como poderia ter passado aquelas horas - que pareciam ter sido a vida inteira - com ele sem que tivesse escutado ou gravado seu nome. "Como eu posso te amar tanto assim?"
- Diga, querida... Qual o meu nome?
Anaïs sentia que a dor se dissipava num prazer estranho, um desejo desconhecido de pernas cada vez mais bambas.
- Não...
- O que você vê, Anaïs? - o coito tomava uma proporção bestial, sonora, antropofágica. O rosto dele não era mais o mesmo, estava distorcido, diferente, deformado. O quarto parecia derreter ao redor deles. Aquilo parecia o inferno que Anaïs sonhava, o lugar escuro que cultivava sem que tivesse noção do que significava carregá-lo em si.
- Diga... o meu... nome!
Anaïs sentia que outro mundo se rompera dentro dela. Ou algo se fundira definitivamente ali. E o mundo anoiteceu novamente.

[continua]



quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

silêncio

Teu punho feroz
oferece-me sonhos
e desvirtudes
tuas veias
- loucas -
devoram pensares
que tua boca esquece
porque tua boca saliva
tua boca não pensa

- por que pensaria a boca?

teu corpo grita silêncios
me ensurdece com a imagem
- esboço de teus segredos de homem -
tu me contas desejos
com o corpo

- palavras imaginárias -
porque o corpo não profere palavras

há de se amar
comer
ferir
amar novamente
e morrer
- sem data, razão ou pressa -
no pequeno suicídio
silencioso
do sepulcro do teu corpo.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Anaïs - parte VIII: o espelho

Aquilo não parecia passar de um sonho burlesco.
- Como você entrou? - a cabeça de Anaïs parecia rodar pelo avesso e a garganta falhava ao tentar conter a voz embargada.
- Você sempre me deixa entrar, querida. 
As mãos correram pelas costas de Anaïs enquanto o corpo grande se juntava ao dela ao lado do vaso. "Eu me sinto patética nesse estado...". Aquela era mais uma das cenas fora de contexto dos dias que lembrava ter vivido. O passado mais distante que dois ou três dias parecia ter escoado por alguma espécie de ralo com proteção, onde toda a água escorre e ficam apenas os dejetos que precisam ser postos no lixo. 
- Por que eu não consigo lembrar a porra do seu nome? O que você está fazendo comigo, afinal? Por que eu me sinto estranha e confusa e a merda da minha cabeça não para de doer quando você vai embora? Por que você vai embora, merda? E por que diabos volta?!
Todo o fôlego foi usado de uma vez para fazer aquele monte de perguntas e destilar o descontentamento de uma pessoa que se dizia feliz com a solidão, que lidava terrivelmente com o sofrimento alimentado por um punhado de sem-razões que justificassem sua existência, que forjava um mundo de atrocidades imaginárias contra si mesma - atrocidades de pensar.
- Eu não te dei as chaves.
- Não disse que havia me dado. Você apenas deixa que eu entre. 
Havia um movimento discreto de canto de boca que ela não havia notado antes. "Desgraçado..."
- Não fode! - ela se levantou aos tropeços e voltou ao quarto para procurar os cigarros. "Onde eu deixei a porra do isqueiro?". Havia isqueiros e fósforos espalhados por todo o apartamento. Havia cigarros e cinzeiros por todo lado também. Não queria precisar voltar, refazer os caminhos e lembrar do que não era preciso. Bastava que tudo estivesse onde precisava estar - por todo canto - para que pudesse viver tranquila. "Não, eu não sou tranquila."
Os olhos pacientes seguiam-na pelo apartamento, com um misto de sarcasmo e piedade. Anaïs andava de um lado para outro, tentando não parar ou não encarar os olhos do outro: sentia-se envergonhada por estar tão exposta e neurótica, como se os olhos dele pudessem rasgar-lhe a pele do abdome para que se alimentasse de suas vísceras. "Eu esqueci de novo de fazer as unhas."
E entre a caminhada em círculos pelo apartamento e as tragadas no cigarro amassado, Anaïs parou diante da janela do quarto novamente. Olhou a rua. Despiu-se. Olhou-se no espelho. O horror estava refletido ali: não era ela que via. Havia se tornado uma criatura diferente. 
- Mas que m...
- São seus olhos, querida. Olhos, cabeça... seus crimes de sentir... Um prodígio... Isso é só a antecipação silenciosa do inferno que te consome... Agora me diga, Anaïs... o que você vê?
[silêncio...]

[continua...]



esquina

Guardo um canto teu em mim
canto meu de espaço
canto composto
canto-vértice
canto-mudo
canto teu
canto
Eu.

Eu
canto
o tempo
pelo tempo
que ainda houver
nesse espaço infinito
de sonhos transversais
e nomes gemidos em música
no desfiladeiro alcóolico de tua garganta.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Fortuna


O Fortuna
velut luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis.
vita detestabilis,
nunc obdurat
et tunc curat;
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.

Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
nunc per ludum
dorsum nudum
fero tui sceleris.

Sors salutis
et virtutis
michi nunc contraria,
est affectus
et defectus
semper in angaria.
Hac in hora
sine mora
corde pulsum tangite;
quod per sortem
sternit fortem,
mecum omnes plangite!

CARMINA BURANA 17, in Carmina Moralia et Satirica (Canções da Moral [dos valores] e Satíricas)

Anaïs - parte VII - estômago



Anaïs não conseguia se levantar da cama. Seu corpo inteiro doía intensamente: uma dor latejante, quente, inflamada. Sentia uma mal estar agonizante na boca do estômago - aquela estranha sensação magnética de ponta de faca, uma sensação metálica não perfurante de aço frio e cego.
"Que merda estranha", disse revirando-se na cama. A ebulição que havia tomado sua pele agora se concentrava toda no estômago e a náusea provocava-lhe vertigens e um insuportável gosto amargo na boca. "Vou enfiar o dedo na garganta", pensou. "Deve aliviar..." Arrastou-se da cama de lençóis amarrotados e cheirando a sexo da noite anterior - "Quando foi que ele esteve aqui? Merda. Foi há séculos." - até o banheiro. Ali jazia uma toalha molhada e o cheiro de sabonete. Ali jazia o lugar estranho que mais amava naquele apartamento, porque apesar de fumar feito louca, era o único espaço que não fedia a cigarro. Abaixar-se diante do vaso sanitário foi lento e doloroso, como se cada fibra do corpo se estendesse inimaginavelmente até não haver mais elasticidade em parte alguma do corpo. "Esse filho da puta me deixou pior do que estava antes." Os olhos ficaram exatamente na altura de uma pequena rachadura no azulejo antigo da parede. "Está sujo. Tá vendo, estúpida? Se você limpasse essa merda, isso não pareceria uma rachadura. É só sujeira." E os dedos começaram a esfregar a linha escura sobre o azulejo verde. Esfregava com mais força na medida em que notava que não se tratava de sujeira. Não era superficial. As cicatrizes ali eram bem mais profundas. "Merda!" - gritou. E se prostrou diante do vaso, curvada e soluçando mais do que havia feito na noite anterior. Tudo parecia ter perdido sentido em tão poucas horas, como se a vida tivesse se resumido sem aviso prévio. Não havia plano de escape ou rota que a levasse a outro caminho senão aquele resto de vida insossa e sem sentido. Aquela falta de vida, na verdade, era apenas mais um cômodo estranho na estranha mente de Anaïs, naquele espaço escuro e repleto de quimeras. "Eles mentem o tempo todo. Não existe porra de sentido em nada..." O indicador direito pressionava o meio da língua para baixo, na tentativa de expurgar o que havia de ruim dentro dela, de separá-la de algo nocivo que ela própria cultivava. Queria vomitar seus erros, emendar o que pudesse, corrigir o que ainda tivesse salvação. "Por que eles não param de dançar na minha cabeça?" Cada pressão do dedo na língua acompanhava um espasmo abdominal e o gosto insuportavelmente amargo de bile. Mas cada lágrima que corria pelo canto do rosto tinha carregava o sal do nome desconhecido daquele homem que a penalizara por ser quem era, tão imperfeita e duramente frágil. E quando pensava que a Roda da Fortuna massacrava seu mundinho pequeno com toda força, começou a ouvir Carmina Burana ecoar da sala do apartamento, como se a loucura se deslocasse para a sua realidade. 
E aquela mão conhecida de unhas bem cortadas novamente surgia do nada para aplacar sua dor, para segurar os ombros que caíam na direção do vaso, para dizer que sua insanidade existia e que era preciso dominá-la. Ele havia voltado para curar-lhe o estômago. E tirar o gosto amargo da boca de Anaïs.

[continua...]

sob a pele

De V. e A.
[também publicado em http://poeticaipsisverbis.blogspot.com/view/classic ]

(v)

há um lobo
através de mim

não sei que faz
tua carne
que causa nele
que causa em mim
fome

(a)

porque dou a carne
em oferta

a fome que te devora
e move e alimenta

porque tua fome te consome inteiro

te faz firme
no propósito da caça

(v)

o lobo que me habita
anseia
todavia
que me devores:

quer te comer
primeiro
por dentro

(a)

sinto pulsar
dentes
desejos
fomes
anseios
lupinos
por baixo da pele mansa
que me cobre -

disfarce

(v)

cobre-te
faz de ti
nessa pele
gente
- e eu te comerei até 
descobrir-te

descoberta
nua de si
como eu

selvagem

(a)

em pele viva
carne crua
teus pelos sob minhas unhas
eu
viva
inteira
nua

tua